Roteiro de viagem: 3 714 quilômetros pelo mundo perdido do Atacama
Com estradas perfeitas e paisagens de outro planeta, o norte do Chile é um dos melhores destinos rodoviários da América
Três anos atrás, nessa mesma época do ano, minha mulher – que nasceu no Chile – comunicou oficialmente nossos planos para as férias de dezembro: ir até Santiago visitar seus familiares, e de lá seguir para San Pedro de Atacama. Como marido independente, rígido e inabalável que sou, fiz o que manda a cartilha dos chefes do lar: disse OK, e fui atrás de mapas.
De Santiago até o Atacama são cerca de 1 700 quilômetros no rumo norte, só a ida. Providenciamos um GPS, mas ao olhar os mapas rodoviários do Chile, você percebe que se perder nas estradas é quase impossível para os descendentes de Colombo e Cabral. Este é um país com 175 quilômetros de largura em média – minha tiração de sarro preferida era fingir que errava um caminho e dizer “putz, entramos na Bolívia!”. Os roteiros de norte a sul são concentrados em uma única rodovia, a nº 5, denominação da parte chilena da lendária Carretera Panamericana, um monumento que se estende desde Buenos Aires até o Alasca, num total de 25 800 km.
Nossa ideia passou a ser simplesmente pegar o carro, seguir para o norte pela costa e ir parando onde bem entendermos. Essa é a grande maravilha de viajar de automóvel: você não precisa ficar reservando hotéis, não precisa de cronograma rígido, nem precisa pensar duas vezes quando alguma placa te chama a atenção e você resolve alterar algumas centenas de quilômetros do roteiro. Claro que você acaba mais sujeito a roubadas, como uma quebra mecânica ou alguma cidade sem nenhuma vaga em hotel, mas essa é a vida – e ela é bem mais cheia de possibilidades quando envolve algum risco.
Tradução rodoviária
Antes de começar a viagem, vale um pequeno glossário do espanhol praticado no Chile. Rodovia por lá é carretera ou autopista. Endereço é dirección, rua é calle (pronuncia-se “cadje”) e direita e esquerda são respectivamente derecha e izquierda. Pedágio é pedaje, pneu se traduz como pneumatico (o “p” soa quase mudo) e gasolina vira benzina – para perguntar pelo posto de gasolina mais próximo, você diz “donde és el benzineiro mas cerca de acá?”. Os policiais que fazem as rondas ostensivas tanto nas cidades como nas estradas são os Carabineiros, sempre bastante prestativos e calmos, apesar de sérios.
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A principal rede de postos chama-se Copec. Você também encontra vários familiares Petrobras por lá, mas deixe o patriotismo de lado: eles são bem mal-equipados (a maioria nem tem bomba para calibrar os pneus), e o serviço nos Copec é muito melhor, com frentistas que realmente entendem um mínimo de mecânica, e que sempre estão dispostos a ensinar o caminho correto. Além disso, em qualquer Copec você encontra guias de estradas sensacionais, com mapas completos e uma série de roteiros prontinhos e detalhados.
Partimos de Santiago nas primeiras horas da manhã – e mesmo assim rolou um trânsito, afinal são mais de 5 milhões de habitantes na metrópole, boa parte deles motorizados. Os primeiros 477 quilômetros da Carretera Panamericana no rumo norte são duplicados, e oferecem asfalto e geometria impecáveis – uma constante em todo o Chile, como veremos a seguir. Após cerca de 160 quilômetros, a rodovia encosta no litoral, e aí a paisagem começa a ficar realmente bonita, com centenas de praias encravadas num cenário que para nós, brasileiros, parece coisa de outro mundo.
Pedras e areias intercalam-se entre planícies sem fim e cordilheiras altíssimas. A vegetação é árida, transmitindo uma sensação constante de mundo perdido, e o verde só dá o tom em pequenos oásis cultivados nas margens dos rios. Boa parte das praias são desertas, do tipo que eu escolheria caso quisesse praticar um retiro espiritual e escrever um livro.
Nossa primeira parada planejada foi a cidade de La Serena. Chegando lá, uma leve decepção: grande, cheia de grupos de turistas e com a orla tomada por prédios, parece o Guarujá. Nada contra o Guarujá, mas o que realmente procurávamos eram cidadezinhas menores, mais charmosas e autênticas. Decidimos seguir para o norte. Uns cem quilômetros depois, já no final da tarde, vimos a placa de um desvio para a esquerda indicando Huasco. “Vamos tentar?”.
A cidade portuária de Huasco é bonitinha, mas não tem nada demais. O que realmente valeu por lá foi a indicação de uma rota costeira de 200 quilômetros que começa ali e vai até Caldera, passando por uma região quase desabitada. Não tem asfalto, mas o pavimento está em excelentes condições – e bem sinalizado. Foi uma das partes mais surreais da viagem: quatro horas com aquela sensação de que somos os únicos habitantes da terra, apreciando uma paisagem lunar em pleno litoral. De quebra, seguimos por uma plaquinha que indicada “olivas centenárias”, e acabamos descobrindo a mais antiga região produtora de azeite e azeitonas da América, um oásis encravado entre montanhas e desertos.
Chegando lá, no meio do nada, o proprietário perguntou de onde éramos. “São Paulo, Brasil”. Ele arregalou os olhos. Chamou a esposa e contou em bom portunhol que vivera 25 anos em São Paulo e que acabara de voltar, para cuidar das terras do sogro. “Não dá para acreditar que as primeiras pessoas que encontramos por aqui são do Brasil também”, ele dizia.
Batemos um papo tão agradável – regado por azeites e azeitonas divinos, com nenhuma química e baixíssima acidez – que acabei esquecendo de perguntar se havia algum posto de gasolina ali por perto. Claro que não havia. Quando vi uma placa indicando 183 quilometros até a próxima cidade, bati o olho no marcador de combustível com menos de um quarto dos 45 litros do tanque e senti um calafrio. Ar-condicionado desligado, velocidade reduzida ao tédio, conferi nosso estoque de provisões e comecei a rezar, pois parecia não haver mais ninguém na estrada. Depois de algumas horas entre o paraíso de praias quase virgens e o inferno do calor com combustível racionado, finalmente voltamos à rodovia nº5, encontrando um posto Copec logo adiante, com a luz da reserva já acesa. Ufa!
Seguindo viagem rumo ao Atacama, a próxima parada obrigatória é a Bahía Inglesa, uma pequena enseada de águas transparentes e areia branca, talvez o lugar mais aprazível de toda a viagem. Curioso é que, mesmo na semana entre o Natal e o Ano Novo, suas pousadas e restaurantes estavam tranquilíssimos. Ocorre que as férias escolares no Chile só começam em janeiro, portanto dezembro é o mês ideal para se viajar por lá, pois o clima já esquentou mas a procura – e os preços – ainda não.
Outros vilarejos igualmente encantadores como Chañaral e Taltal surgem pelo caminho, até chegarmos a Antofagasta, a principal cidade do norte do Chile. É uma excelente parada para você fazer compras, sacar ou trocar dinheiro e planejar o resto da jornada, pois de lá o sentido da viagem muda do rumo norte para o leste, em direção a San Pedro de Atacama. As estradas (de mão dupla desde La Serena) continuam ótimas e belíssimas, apesar de alguns trechos estarem em obras.
Estradas ótimas, paisagens de sonho
No Chile, a comunicação entre motoristas de carros de passeios e caminhões é um pouco diferente. Enquanto no Brasil o caminhoneiro geralmente dá seta para a direita para indicar que você pode ultrapassá-lo em uma via de mão dupla, no Chile ele faz o inverso, e dá seta para a esquerda. Outra dica importante é que, nas imensidões desérticas do norte do país, a presença de policiais e postos de combustível é bem pequena. Mesmo com placas indicando a presença de radares, não consegui identificar nenhum ao longo da viagem. Foi quando um dos nossos amigos chilenos explicou que todos os pontos de radares fotográficos haviam sido retirados – sabe-se lá por que – das estradas do país há pouco tempo. Ah, se eu soubesse disso desde o começo…
Até chegar a San Pedro de Atacama, a vista continua deslumbrante. Todos os dias, pelo menos umas quatro vezes ao dia, me sentia obrigado a parar o carro, apreciar o cenário, dar uma suspirada e registrar os momentos para a posteridade, principalmente nas manhãs e nos finais de tarde, quando a luz do sol dá aquela deitada e parece tornar tudo ainda mais bonito. Em várias das colinas cobertas apenas por areia ao longo das estradas, dá para notar os trilhos de veículos off-road que certamente renderam bastante diversão. E vale lembrar, o percurso do atual rali Dakar passa exatamente por aqui.
O deserto do Atacama em si e todas as suas atrações valeria umas duas matérias à parte. É um lugar de extremos, e oferece algumas das paisagens mais impressionantes do planeta. A dica aqui é deixar o carro de lado, pesquisar os pacotes de passeios das operadoras e dar uma choradinha bem brasileira na hora do desconto. Vale mais a pena, pois algumas atrações são bem distantes, acessíveis somente por estradinhas precárias que demandam conhecimento prévio. Além disso, sai mais em conta, dá menos dor de cabeça, e oferece a oportunidade de conhecer outros viajantes durante os tours.
Passamos cinco dias bem agradáveis por lá antes de tomar o caminho de volta, também pela costa. Dessa vez, planejamos parar em alguns dos vários parques e reservas nacionais ao longo do caminho. Os dois mais espetaculosos são o Parque Nacional Pan de Azucar, um conjunto de praias desertas onde é possível ter permissão para acampar e esquecer da vida, e a Reserva Nacional Pingüino de Humboldt, onde um simples passeio de barco permite conhecer boa parte da fauna do Pacífico como pinguins, leões marinhos, golfinhos e flamingos. Outra tarefa prazerosa é ir atrás dos mercados municipais das cidades litorâneas, e experimentar todo o inacreditável menu de frutos do mar da costa chilena da maneira mais fresca e barata possível.
O único percalço no retorno ocorreu num momento em que percebi que a maioria dos carros estava respeitando rigidamente o limite de velocidade indicado nas placas. Naquele momento de indefinição entre reduzir ou continuar no mesmo ritmo, surgiu um carabineiro pedindo para que encostássemos o carro. Que vacilo: fui parado pela única patrulha visível num raio de 3 mil quilômetros. Ele estava com um radar móvel dentro da viatura, e me avisou: o senhor estava a 123 km\h num trecho com permissão para 100 km\h. Para piorar, cobrou a habilitação internacional para dirigir.
Assumi o erro do excesso de velocidade e expliquei, meio envergonhado, que a locadora não me pediu nada além da CNH brasileira. O guarda, certamente ciente de que quase ninguém vai atrás do registro internacional, limitou-se a checar os documentos, explicou que uns cem quilômetros adiante o limite voltava a ser de 120 km\h, e recomendou que parássemos em Los Vilos para descansar ao invés de ir direto para Santiago. E boa viagem. “Com essa sua cara de japonês nerd, ele deve ter te achado um cidadão responsável”, disse minha namorada, toda engraçadinha.
E assim a viagem seguiu até Santiago, onde completamos 3 714 quilômetros percorridos em doze dias. Recomendo 100% que vocês, latino-americanos de araque, façam o mesmo alguma vez na vida. É um roteiro cheio de experiências sensoriais, e perfeito para ser feito ao volante. Basta tomar cuidado com o combustível, e ficar atento nos trechos de reta infinita que acabam dando sono em que já está meio cansado. Segurança não é problema, e o chileno em geral é bastante gentil e receptivo com turistas.
Nossa próxima jornada pelo país já tem destino certo: o sul do Chile e suas paisagens radicalmente diferentes, com muito verde, lagos, vilarejos de estilo europeu e, lá para baixo, a beleza de uma Patagônia que é ainda mais bonita e cheia de atrações que o lado argentino. Torres del Paine, nos aguarde!