Fiat 147: como foi criado e como anda o primeiro carro a álcool do mundo
Lançado em 1979, o Fiat 147 a álcool trouxe soluções usadas até hoje por carros flex
Publicado originalmente em julho de 2019
Comparado aos epítetos usados para se referir à Fiat após sua estreia no Brasil, em 1976, o apelido “Cachacinha” dado ao 147 a álcool era o mais simpático – e real, pois o cheiro dos gases de escape realmente lembram a bebida.
Seu lançamento completa 45 anos. Mais do que o primeiro carro a álcool brasileiro, o Fiat 147 foi o primeiro de produção em série no mundo.
Era a resposta brasileira à crise do petróleo de 1973, quando os países árabes organizados na OPEP aumentaram o preço do barril de petróleo em mais de 400%.
Com a criação do Programa Nacional do Álcool (Pró-álcool), em 1975, o governo brasileiro tinha o objetivo de estimular a produção de álcool e passar a usar o álcool – que mais tarde teria seu nome corrigido para etanol – tanto misturado à gasolina, como combustível.
Para isso, além do esforço para estimular a criação de novas usinas, houve incentivos fiscais e empréstimos bancários a juros baixos para produtores de cana-de-açúcar e fabricantes de automóveis.
Na Fiat, o desenvolvimento do 147 a álcool começou logo após o lançamento do modelo. Ainda em 1976 a Fiat exibiu no Salão do Automóvel um dos primeiros protótipos, já com algumas dezenas de milhares de quilômetros acumulados.
Logo no início do projeto a Fiat optou por trabalhar no 1.3 8V Fiasa, que se mostrou mais adequado que o irmão de 1.050 cm³ para a adaptação ao álcool.
O que seria aprendido dali em diante viria de tentativas, erros, experimentos e dos muitos quilômetros rodados em testes.
Era a indústria reaprendendo a acertar um motor. É mais difícil vaporizar o álcool, que forma gotículas maiores e precisa ser injetado em maior quantidade que a gasolina, por conta do poder calorífico menor que o da gasolina.
O poder corrosivo do etanol era outro entrave. Isso exigiu modificações contínuas nos materiais usados em todo o sistema de alimentação (tanque de combustível, bomba, tubulações, mangueiras, carburador e etc.).
O tanque, que era revestido internamente com chumbo, ganhou revestimento de estanho. Já os componentes do motor receberam uma camada de níquel químico, capaz de proteger os metais da ação corrosiva.
Tudo isso ainda não evitava um problema crônico do carro a álcool: a partida a frio.
A solução de ter um tanquinho exclusivo para a gasolina para dar partida no motor frio, ainda usada em alguns carros flex hoje, já e estava presente no Fiat 147.
Mas o acionamento não era automático: era necessário apertar um botão no painel, que acionava a bomba elétrica (a mesma usada no lavador do para-brisa). Esta, por sua vez, injetava gasolina no coletor de admissão.
Havia ainda a válvula Thermac, encarregada de levar ar aquecido pelo coletor de escapamento para dentro do motor durante a fase de aquecimento. Assim, evitava-se falhas do motor nos primeiros momentos após ser ligado.
“Nós tinhamos os lugares frios, como Campos do Jordão, para testar os carros. Mas, no fim, contratamos cabines frigoríficas para colocar os carros, pois eram muitas as experiências a serem feitas e não dava para esperar de manhã para ter 5°C”, conta Robson Cotta, gerente de Engenharia Experimental da FCA que trabalhou no desenvolvimento do 147 a álcool.
Quando pronto, o motor 1.3 a álcool tinha taxa de compressão de 11,2:1, contra 7,5:1 da versão a gasolina. A potência, porém, subiu apenas 1 cv, de 61 para 62 cv, sendo 11,5 mkgf de torque – contra 9,9 mkgf.
O primeiro de todos
Enquanto o primeiro Fiat 147 foi parar em uma concessionária do Rio de Janeiro – que o preserva até hoje –, o primeiro 147 a álcool pertence ao Ministério da Fazenda, onde foi usado por mais de 30 anos.
O que revela a importância desse carro não é o chassi, que mantém a mesma sequência dos a gasolina, mas uma plaqueta de alumínio instalada no painel pelo próprio Ministério.
Talvez tenha sido ela a responsável pelo carro estar tão original e bem cuidado mesmo após rodar mais de 80.000 km.
QUATRO RODAS teve a oportunidade de dirigir este exemplar na pista de testes da fábrica da Fiat, em Betim (MG), de onde ele saiu há 40 anos.
A experiência foi quase completa: o 147 não pegou de primeira, mas não precisou de injeção de gasolina. Foi só girar a chave mais uma vez que o 1.3 Fiasa acordou sem falhar.
O cheiro quase inebriante de cachaça logo ganhou a cabine, que é até bem aproveitada para um carro de 3,62 m de comprimento, 1,54 m de largura e 2,22 m de entre-eixos. Interfere positivamente aí o fato de também ter sido o primeiro carro nacional com motor transversal.
O cinto é abdominal, o banco não tem encosto de cabeça, o volante é claramente deslocado para a direita e só há um retrovisor externo, do lado esquerdo.
Em compensação, os pedais deslocados para a direita – como em parte dos Fiat de hoje – facilitam a adaptação.
Movimento a alavanca, mas fica dúvida se a primeira marcha engatou corretamente. O câmbio de quatro marchas do 147 sempre foi muito criticado pelos engates, mas desta vez a culpa era da embreagem já alta pelo desgaste dos anos.
O motor 1.3 faz o 147 embalar rápido e logo me pego a 80 km/h procurando a quinta marcha, que não existe. As relações de marcha são próximas entre si, o que de certa forma explica a agilidade do pequeno Fiat.
Embora seu tempo de 0 a 100 km/h deva ficar ao redor dos 18 segundos, é um carro instigante.
Me aproximo da curva e a sensação do pedal de freio deixa um pouco de medo. Há discos na dianteira e tambores na traseira, mas falta assistência: é preciso aplicar força ao pedal até sentir o freio reagir.
Para um carro de 40 anos, até que ele para bem.
A suspensão independente nas quatro rodas confere estabilidade ao pequeno Fiat, e a direção sem qualquer assistência é leve. Não poderia ser diferente: é um carro com 790 kg calçado com pneus 145/80 13.
Tudo é muito natural e sem filtro, dando uma boa sensação de liberdade que os carros novos não dão. E muitos motores flex de hoje não têm funcionamento tão suave com álcool como esse 1.3 de 40 anos atrás.
Como era ter um carro a álcool?
No início, havia apenas 20 bombas de álcool em postos de combustíveis das quatro principais capitais brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Recife), mas esse número logo subiu. O interesse no combustível, também.
Ao detectar o desvio do combustível de origem vegetal, seja para fabricação de cosméticos, seja para falsificar bebidas, o governo impôs a necessidade de um adesivo no para-brisas que autorizava o abastecimento daquele veículo com álcool.
Além dos incentivos fiscais, o carro a álcool possuía a vantagem de poder ser reabastecido aos finais de semana, quando a venda de gasolina em postos era proibida.
Além disso, o álcool tinha preço fixado em 65% do valor da gasolina em todo o país. Como a diferença de rendimento é de 30%, compensava.
Deu certo. 70,7% dos carros vendidos na década de 1980 eram movidos a álcool.
Poderia ser melhor não fosse o desabastecimento de álcool em 1989, provocado pelo aumento do valor do açúcar no mercado internacional. Os usineiros preteriram o álcool em favor do açúcar, levando à falta do combustível nos postos.
Com o valor do álcool cada vez mais próximo do da gasolina ao longo dos anos 1990, a produção dos carros a álcool entrou em forte declínio.
Em 2000 era difícil encontrar um carro novo a álcool nas lojas: quem quisesse um, teria que encomendar.
O álcool voltaria a ganhar atenção em 2003, com o início da comercialização do VW Gol flex. Após um período traumático, a possibilidade de escolher o combustível mais vantajoso no momento deu uma nova chance ao combustível vegetal.
Agora, a Fiat pode mudar o futuro do álcool com o projeto do motor E4. Seu objetivo é queimar apenas álcool com a mesma eficiência dos motores a gasolina. Mas ele só deverá ficar pronto em 2022.