Há 20 anos, pouco a pouco, os carros começaram a estampar novos emblemas: Total Flex, FlexPower, Econoflex ou simplesmente Flex. Cada marca tinha uma forma de avisar que aquele carro poderia usar gasolina, etanol ou a mistura desses dois combustíveis em qualquer proporção.
A tecnologia revolucionou o mercado na época e trouxe de volta a possibilidade de abastecer o carro com álcool, produto quase abandonado ao longo dos anos 1990, depois de um período próspero, dez anos antes.
“No início dos anos 2000, o consumidor demonstrava interesse em usar etanol pelo baixo custo na época, dado que era comum vermos misturas, ‘rabo de galo’, em carros a gasolina”, diz Roger Guilherme, gerente de engenharia da Volkswagen.
Começou, então, a corrida pelo primeiro carro flex. A Ford chegou na frente ao mostrar o primeiro conceito do Ford Fiesta, mas foi a VW que cruzou a linha no mercado, com o Gol Total Flex.
O desenvolvimento da tecnologia nessa fase teve uma ajuda histórica, já que o país produzia motores a álcool desde o final dos anos 1970. Nessa época, quem teve o pioneirismo foi a Fiat, com o 147.
“O primeiro motor a etanol abriu a porta para tudo o que veio depois do ponto de vista da evolução”, afirma o engenheiro João Irineu Medeiros, hoje diretor de assuntos regulatórios da Stellantis, dona da Fiat, se referindo aos aprimoramentos de hardware e software que vieram depois, como a partida a frio, além do próprio sistema flex.
João Irineu conta que, no tempo do desenvolvimento do flex, o desafio era equilibrar o funcionamento dos motores com os dois combustíveis. “Olhamos para os flex dos Estados Unidos [E85, com 15% de gasolina, e etanol à base de milho], que usavam sensor de combustível para checar a presença do etanol”, lembra. “O sensor custava caro e procuramos uma solução que fosse acessível, através da sonda lambda calculando a mistura após a queima”, conta.
Apesar do hiato no consumo, nos anos 1990, a evolução da tecnologia foi constante nestes 20 anos, segundo os especialistas. Para João, foram duas principais mudanças que surgiram depois: a extinção do tanque auxiliar para partidas a frio e a aplicação do etanol em motores turbo e com injeção direta.
“A introdução da injeção direta foi um ponto marcante, onde o hardware de partida a frio foi suprimido, sendo substituído por uma estratégia de injeção de combustível no ar aquecido pelo próprio pistão”, completa Guilherme, remetendo a outro avanço que dispensava o aquecimento dos bicos injetores.
Para o engenheiro da VW, a revolução foi também conceitual, no entanto. “Creio que a maior mudança nestes 20 anos foi o propósito do flex. Assim como o etanol na década de 80 e o flex posteriormente foram uma resposta a uma demanda econômica, agora essa tecnologia se tornou uma alternativa muito interessante para a descarbonização da mobilidade no Brasil e em países com potencial para produzir esse combustível de forma sustentável”, afirma o engenheiro da VW.
Com essa abordagem ambiental, o engenheiro Roberto Braun, da Toyota, destaca como marco importante a junção do flex com a eletrificação. A marca japonesa apresentou em 2018 um primeiro protótipo do sedã Prius híbrido flex, o primeiro do mundo, segundo a empresa. E, em 2019, isso se tornou realidade para o mercado, com o lançamento do Corolla Hybrid Flex.
“O trabalho foi direcionado no sentido de extrair o potencial de cada motorização: alta eficiência do motor elétrico e os baixíssimos níveis de emissões de CO2 do motor flex utilizando combustível oriundo de fonte 100% renovável”, afirma Roberto.
A preocupação das marcas com a descarbonização pode ditar o futuro dos flex, ou o fim deles. As fabricantes não falam abertamente, mas o etanol é tratado por todos como uma solução economicamente viável para acabar com a gasolina nos países em desenvolvimento, já que a eletrificação total ainda é muito cara.
“Considerando a emissão de CO2 em todo o ciclo de vida do produto, se observa que o carro a combustão, se abastecido ao longo da vida somente com etanol, tem emissão total similar a um elétrico a bateria, mesmo considerando ‘limpa’ a matriz da eletricidade brasileira”, diz Guilherme.
“O etanol é uma grande oportunidade, no Brasil e em mercados similares, para redução de CO2, pois já é conhecido e maduro. Pelas informações que coletamos, no Brasil, ele é uma fonte de energia sustentável, que pode inclusive ter sua demanda aumentada sem afetar o meio ambiente”, explica o engenheiro da VW.
A Stellantis, que estaria mais avançada no desenvolvimento de um motor 100% a etanol – com um protótipo a ser apresentado ainda em 2023 –, despista, mas diz que vai usufruir das tecnologias que existem hoje para reduzir o consumo com o combustível, como é o caso da injeção direta e aumento da taxa de compressão. “E temos outras em desenvolvimento nesse sentido”, afirma João Irineu.
Ainda embrionário na Índia, onde o Toyota Corolla híbrido flex foi apresentado no ano passado, o etanol tem dificuldades para se tornar uma commodity mundial. Ele enfrenta a concorrência de outras tecnologias mais populares nos países de primeiro mundo e tem suas próprias limitações, como a distribuição. Mas existem soluções. A Porsche, por exemplo, vai produzir e-fuels no Chile para vender na Europa.
“A gente sabe quanto é custoso, ainda mais sendo um país em desenvolvimento, ter que buscar um equilíbrio ambiental, mas também econômico e social. Veículos 100% elétricos ainda são caros. A bateria é muito cara. Não é uma solução em massa para um país como o nosso”, conclui João.
O etanol sempre foi uma alternativa importante. Antes do Proálcool, foi usado como combustível no tempo da II Guerra. Agora os próximos anos vão dizer como ele se sairá no cenário de luta pela sobrevivência ambiental.