A saga do GT 4R, o Puma feito sob encomenda para QUATRO RODAS
Sorteados por QUATRO RODAS, eles foram os únicos carros feitos para uma revista e entregues para os vencedores
É mais que um reencontro. Estes três GT 4R nunca estiveram juntos sob o mesmo teto e diante da mesma câmera fotográfica. Nem na Puma, que os projetou e fabricou por encomenda da QUATRO RODAS, nem na entrega das chaves aos ganhadores – os carros foram sorteados ao longo de três edições entre leitores da revista, quase cinco décadas atrás.
No ano de 1969, a revista fez suspense e criou expectativa nos leitores. A edição de janeiro trazia os primeiros esboços do projeto. O desenvolvimento dos protótipos, em Araraquara (SP), foi acompanhado nas edições seguintes. Em julho vieram os primeiros cupons da promoção. Ainda não se conheciam as formas e as especificações do motor do primeiro e até hoje único carro brasileiro criado sob encomenda em série limitada.
Carros feitos para uma revista são fatos raros no mundo. O Range Rover Vogue apenas usa o nome da revista como grife, como também ocorreu à Montana Fluir. Só em 2010 a edição inglesa da revista masculina GQ produziu algo parecido, o GQbyCITROËN. Mas é apenas um carro-conceito, sem dono, um estudo sem o compromisso de rodar por ruas e estradas.
O GT 4R foi realizado pelo fazendeiro e apaixonado por carros esportivos Rino Malzoni com o designer Anísio Campos, ambos criadores do Puma. “Éramos como dois irmãos, a criação era mista o tempo todo, numa relação absolutamente amistosa”, diz Campos. As influências vinham de esportivos italianos e americanos.
Francisco Vaida, conhecido na Puma como Chico Funileiro, lembra que o GT 4R nasceu de um protótipo desenhado por Malzoni, quase em fase de acabamento. Ele atribui a Anísio as tomadas de ar laterais e dianteiras e alterações pontuais.
Inicialmente, cogitou-se que o modelo teria sobre a plataforma de Karmann-Ghia um motor VW 1600 com carburação dupla Solex 32/34 e comando de válvulas P2 ou o mesmo preparado e expandido para 1.800 cm3. Por julgar que essa opção ofereceria pouca confiabilidade, Jorge Lettry, da Puma, escolheu o 1600.
Sem os faróis circulares, que recobertos por bolhas transparentes ressaltavam as curvas no Puma, as linhas pareciam mais retas no GT 4R, que usava lentes retangulares e um acrílico plano por cima delas. Com 225 cm, o entre-eixos era 10 cm maior que o do Puma VW. As rodas de 13 polegadas eram de magnésio. O volante F-1 era produzido pelos irmãos Fittipaldi.
Bancos, painéis laterais e console central revestidos de couro bege dão requinte à cabine 2+2. Soluções diferenciadas eram a chave de ignição localizada no console, que também abrigava a alavanca escamoteável do freio de mão, que podia ser encoberta por uma tampa deslizante.
Os cintos de três pontos, raros na época, eram produto da preocupação histórica da revista com segurança: décadas antes da obrigatoriedade, QUATRO RODAS pregava o uso do cinto de segurança e contava histórias como a de Oskar, o boneco que quebrou a cabeça num crash-test em 1967.
No painel, velocímetro, conta-giros e marcador de combustível atrás do volante são complementados pelos instrumentos de temperatura e pressão do óleo acima do console – naturais numa marca nascida nas pistas de corrida.
Faz anos que aficionados por Puma ouvem falar que o projeto do GT 4R rendeu mais que três carros. Como filho legítimo, autorizado pela revista, é possível dizer categoricamente: não. Somente estes aqui reunidos foram construídos. O que a Puma produziu além, a partir do mesmo molde, não aumenta essa série oficial limitada a três carros. Mas há casos de parentes próximos…
Luiz Roberto Telles, colecionador de Puma e estudioso da marca, buscou respostas na documentação de fábrica. “Nos registros de produção constam três GT 4R em 1969, mas também um quarto de abril de 1970.” Este pertenceria ao próprio Rino Malzoni. Nos mesmos registros, o primeiro e o terceiro carro teriam a mesma cor. “Fui informado que, ciente disso, a equipe decidiu trocar a cor do terceiro para verde metálico.”
Se havia um equívoco no registro, poderia haver outro? Talvez mais cópias feitas com o molde? Quem esclarece o enigma é Kiko Malzoni, filho de Rino. Para que houvesse molde das carrocerias de fibra de vidro, foi confeccionada uma de lata como base para o molde e a construção do protótipo azul visto na capa da edição de setembro de 1969 de QUATRO RODAS.
“Depois de feita a forma, meu pai fechou as entradas de ar e embutiu o vidro traseiro”, afirma Kiko. Em vez de acompanhar a inclinação das colunas traseiras, como nos GT 4R, o vidro de trás passou a ser menos inclinado, evidenciando a tampa de acesso ao motor. Segundo ele, esse exemplar de lata foi vendido para um dentista de Matão (SP) que clinicava no ABC e em Santos.
Ainda de acordo com Kiko, foi feita uma nova forma com as modificações desse carro e a partir dela saíram mais dois carros. Um, vermelho-escuro, pertencia ao próprio Rino Malzoni. O outro, branco, foi vendido a uma cliente baiana que não se conformava por não ter sido premiada no concurso e até fez plantão na Puma na tentativa de negociar uma alternativa.
Passados meses do concurso, uma crise cambial teria incentivado a Puma a produzir esse exemplar a mais na nova configuração para a fã dos três GT 4R originais.
Outra polêmica é o desenho das lanternas. “Posso garantir que as lanternas eram circulares, do Chevrolet Corvair americano, meu pai até usava um Puma VW 1968 com motor seis-cilindros de Corvair”, afirma Kiko Malzoni, que se lembra de experimentos com as lanternas.
Assim como no protótipo visto na edição da QUATRO RODAS de setembro de 1969, no GT 4R cobre elas são retangulares – de VW 1600 “Zé do Caixão” ou Variant 1970, conforme o especialista. Mas há indícios de que as duas versões de lanternas traseiras foram adotadas. O GT 4R verde já tem as circulares e o azul logo terá.
Os dois estilos fazem parte da história dos GT 4R – e combinam muito bem com seu desenho geral. “Na época, tudo acontecia de forma muito romântica e familiar”, diz Anísio Campos, afirmação que justifica as diferenças entre três carros que, exceto pela cor, deveriam ser iguais.
Os GT 4R são símbolos de uma época sob vários aspectos: seu design e sua forma de construção artesanal são clássicos dos anos 60, um período em que carros de desenho esportivo ainda tinham uma presença tímida na paisagem brasileira.
Mais rara ainda era a iniciativa de construir um carro com tamanho grau de exclusividade a título de prêmio – não se tem notícia de algo parecido nem antes nem depois dessa iniciativa de QUATRO RODAS. Passados quase 50 anos, o prazer de reunir os três filhos e poder contar suas trajetórias é algo que QUATRO RODAS não poderia deixar de compartilhar com você.
Nasce uma estrela
Não é qualquer automóvel cujo desenvolvimento pode ser seguido pelas páginas de uma revista, mês a mês. A ideia do GT 4R foi apresentada na edição de janeiro de 1969. Desde as primeiras ilustrações, a frente já tinha formas bem próximas das definitivas.
No início a tampa do motor teria um sistema de venezianas. Os desenhos de várias traseiras foram mostrados em fevereiro, e no mês seguinte as linhas gerais já estavam resolvidas na forma de uma carroceria de metal. Os moldes das carrocerias de fibra estavam prontos em abril e os testes de motor foram o foco da revista de maio.
Na de junho, uma foto mostrava as três carrocerias finais e o molde de lata. Começavam então os testes. Um mês depois, os primeiros cupons do sorteio eram publicados. A revista de setembro apresentava o protótipo feito de lata, contando que ele havia rodado mais de 15.000 km em testes.
Rino Malzoni notava como a barra estabilizadora melhorou a suspensão e o peso menor aumentou a eficiência dos freios em relação ao Puma GT de série. Fizeram até um 0 a 100 km/h: 13 segundos. Depois ele seria desmontado e examinado em detalhes, para começar a produção: seria um exemplar por mês.
GT do sertão
Logo após o sorteio, em 15 de outubro de 1969, o primeiro vencedor, Frederico Barbosa da Silva, um mecânico de Rondonópolis (MT), vendeu o carro para o publicitário Carlos Spagat. Este o manteve até 1995, quando o GT 4R bronze foi parar na garagem de seu sócio, Sergio Peres.
O carro ficou parado por dois anos até ser comprado pelo colecionador Antonio Pinho, após uma tentativa de adquirir o exemplar azul no Rio de Janeiro. Todos os detalhes eram originais, mas o carro carecia de uma reforma completa. O GT 4R foi restaurado em Nova Friburgo (RJ), onde o colecionador recuperava seus carros. Ficou pronto em 1998 e permaneceu com Pinho até 2005.
Hoje esse exemplar integra um dos maiores acervos do país, no estado de São Paulo. É mantido desativado (sem fluidos), mas pronto para ir para a rua, como no dia destas fotos. Estacionado sobre um tapete persa, ele é destaque numa biblioteca onde fica a coleção de QUATRO RODAS.
Carro de cinema
O segundo GT 4R foi sorteado para Ildefonso Pereira Gonçalves, um bancário de Santos (SP), e está em processo de restauro. Segundo a pesquisa do atual dono, Carmelo Fernandez, após o bancário o carro pertenceu ao falecido cirurgião, pintor e cineasta Aldir Mendes de Souza, que usou o carro pintado de dourado no filme Trote dos Sádicos, de 1974.
De acordo com os registros, na sequência de proprietários veio Sergio Marcus A. Costa, que o vendeu em julho de 1986 para Delny Ribeiro de Carvalho, comerciante de São Paulo. Fernandez comprou seu GT 4R no fim de 2004 e demorou para começar o restauro. Mas agora ele está prestes a voltar a ser azul.
Presente de menino
Em 15 de dezembro de 1969, com 16 anos e ainda sem poder dirigir, Augusto da Silva Pina teve a sorte saber que era o dono do último dos GT 4R. O histórico deste exemplar é o mais obscuro, por ter trocado mais vezes de mãos. Hoje o carro está em Petrópolis (RJ) e pertence a uma testemunha da construção dos três carros, Francisco “Kiko” Malzoni.
A compra foi intermediada pelo colecionador Pinho junto ao dono anterior, o ex-presidente do Puma Club do Brasil e pesquisador da história da marca, Luiz Roberto Telles. Em 2001, Telles convenceu Jadir Mendes, de Marialva (PR), a lhe vender o carro, após meses de insistência. Ainda assim, não saiu barato: custou o valor de outro fora de série, um GT Malzoni, vendido a um amigo, e um empréstimo feito por outro.
Tudo que Telles conseguiu saber sobre donos anteriores são os nomes Sergio, de Maringá (PR), e, antes, Antonio, de Paranavaí (PR). Este último teria adquirido o carro de um dono de São Paulo. O pesquisador não conseguiu fazer ligação com Pina, o sortudo jovem português.
* Reportagem originalmente publicada na QUATRO RODAS em dezembro de 2010