Quando os elétricos eram apenas veículos experimentais, medir a poluição dos automóveis consistia em analisar gases de escapamento e evaporados (combustível não queimado). Com a chegada dos elétricos às ruas, o sarrafo subiu. Porque, apesar de serem classificados como ZEV (Zero Emissions Vehicle), os elétricos podem contribuir para as emissões se consumirem energia elétrica gerada por fontes poluidoras – o que é muito comum.
Antes, bastava medir as emissões “do tanque à roda”; mas, agora, é necessário avaliar o que acontece “do poço à roda”, ou seja: desde a origem do combustível ou da energia até seu consumo. Só assim é possível saber quais as rotas tecnológicas se apresentam como mais limpas em termos de CO2, o principal gás causador do efeito estufa (não existe solução perfeita).
O processo de medição do poço à roda é mais complexo que o usado anteriormente. Seus resultados levam em conta o combustível (composição química, método de produção e até tipo de petróleo do qual deriva), a energia elétrica (forma como foi gerada) e os carros usados nos ensaios (tecnologia e eficiência), para que seja possível comparar as diferentes tecnologias.
O método contempla seis momentos em que ocorrem emissões: captação na fonte primária, transporte dessa matéria-prima, produção da energia/combustível, distribuição, recarga/abastecimento e consumo.
Fontes primárias são as diversas matérias-primas que podem gerar combustíveis e eletricidade (petróleo, cana-de-açúcar, vento, luz solar, combustível fóssil, lixo, madeira, gás natural). Transporte e distribuição consideram os meios usados e as distâncias percorridas. Produção cuida das emissões nas usinas (de álcool, nuclear, hidrelétrica, carvão, diesel, eólica, solar) e nas petroquímicas. Recarga/abastecimento avalia as perdas por emissões, no caso dos combustíveis líquidos, ou aquecimento, no caso das baterias.
Estima-se que durante a recarga perde-se de 5 a 10% da energia em forma de calor, por conta da conversão da energia alternada – dos carregadores – em energia direta – das baterias. E, segundo o ADAC, automóvel clube da Alemanha, quando a recarga ocorre em tomadas domésticas, a perda de energia pode chegar a 30%.
Análise exaustiva
Especialistas europeus, de entidades como JRC, Concawe e Eurocar, que juntos realizaram uma pesquisa que apontou as emissões do poço à roda de motores, movidos por diferentes combustíveis e por energia elétrica, precisaram estabelecer os parâmetros a serem seguidos, antes de iniciarem as medições, para que não houvesse dúvidas das condições em que os resultados foram obtidos.
O nome do estudo “Well-to-Wheels Analysis of Future Automotive Fuels and Power trains in the European Context” deixa claro que suas análises foram feitas no contexto europeu. Ou seja, onde a matriz energética é composta predominantemente por recursos de origem fóssil (petróleo e gás natural).
Para efeito de padronização, no que diz respeito à tecnologia de produção, os pesquisadores consideraram sempre os métodos mais avançados disponíveis, que são os que conseguem produzir de forma mais eficiente e limpa. E, para os veículos adotados, a lógica foi a mesma, tendo como referência motores que representam o estado da arte na tecnologia equipando sedãs compactos, de cinco lugares, modelos típicos do segmento C europeu.
Além dos motores a combustão, os técnicos avaliaram diversas tecnologias de propulsão elétrica, do híbrido leve ao fuel cell (MHEV, HEV, PHEV, REEV, BEV, FCEV). E, entre os combustíveis testados, foram pesquisados mais de 20 tipos considerando formulações e matérias-primas.
A relação inclui: gasolina comum e E10 (com 10% de etanol), diesel comum e B7 (7% de biodiesel), etanol, metanol, HVO, DME, OME, MTBE, CNG, LNG, LPG, sintéticos (gasolina, diesel, DME, OME) e até hidrogênio (extraído de água, gás natural, etanol e metanol). Os ciclos dos ensaios foram os conhecidos NEDC e WLTP.
Esse estudo, que existe desde 2003 e está na quinta atualização, traçou 250 cenários possíveis para a mobilidade na Europa, a partir dos recursos e das tecnologias disponíveis projetados até 2025. O trabalho foi apresentado em 750 páginas, sendo 250 ocupadas pelo relatório com mais de 500 documentos anexos. Pelo cuidado evidenciado nesse estudo, fica clara a importância de se conhecer as condições em que as medições são feitas antes de se comparar os resultados.
“Tem um par de pesquisas por aí”, alerta o CEO da GM para a América do Sul, Santiago Chamorro, que recentemente anunciou o desenvolvimento de carros elétricos no campo de provas da empresa, no Brasil. “Uma delas faz a comparação de diferentes tipos de tecnologia, usa a matriz chinesa e demonstra que o veículo a álcool híbrido é melhor que o elétrico. Outra compara com a matriz energética europeia”, diz. “Comparando peras com peras é indiscutível que o elétrico é melhor, ambientalmente falando”, afirma.
Etanol brasileiro
Mesmo quando a comparação é igualitária, no entanto, seus resultados podem ser interpretados por diferentes pontos de vista. Outro estudo, este feito no Brasil, pela Stellantis, em parceria com a Bosch, seguindo o critério do poço à roda, também demonstrou que os elétricos são mais limpos, quando abastecidos com energia elétrica do Brasil, que possui uma matriz formada em 84% por recursos sustentáveis.
Mas concluiu que a vantagem dos elétricos não é tão grande quanto se imagina na comparação com um modelo a combustão rodando com etanol produzido no Brasil. O estudo europeu não se aprofunda em análises com etanol porque sua produção na Europa, derivada de cevada, centeio, milho e celulose, é pequena.
Menos abrangente e criterioso que o europeu, o estudo brasileiro não reproduziu ciclos de consumo conhecidos (NEDC ou o correspondente nacional NBR 7024 ou WLTP). Rodou 240 km, em um teste dinâmico na pista da Stellantis, em Betim (MG), com um Jeep Compass abastecido com 100% etanol hidratado, e simulou a rodagem de outras três situações – gasolina comum brasileira (com 27% de etanol anidro), eletricidade brasileira e eletricidade europeia.
Ao final, encontrou 60,64 kg de CO2, rodando com gasolina; 30,41 kg de CO2, com eletricidade europeia; 25,79 kg de CO2, com etanol, e 21,45 kg de CO2, com eletricidade brasileira. “Os resultados comprovam as vantagens comparativas da matriz energética brasileira e, principalmente, a importância dos biocombustíveis para uma mobilidade mais sustentável”, afirma o presidente da Stellantis para a América do Sul, Antonio Filosa.
Ao contrário da GM, que defende a substituição dos motores a combustão, sem demora; a Stellantis vê na tecnologia híbrida-flex uma alternativa mais adequada ao Brasil.
Mitos derrubados
A escolha das tecnologias será uma decisão econômica. Adotar soluções regionais pode ser interessante. Mas, em geral, para a indústria, quanto maior for a universalização da oferta, melhor.
O método do poço à roda ajudou a derrubar alguns mitos, como o do balanço neutro do etanol, combustível que devolveria à atmosfera só o CO2 captado anteriormente pela plantação da cana. De acordo com a Stellantis, a lavoura absorve somente parte do CO2 produzido, cerca de 60 a 70%, quando se acrescenta à conta as parcelas do maquinário usado no cultivo, colheita e transporte da cana até a usina e do etanol até os postos.
O mesmo vale para os combustíveis sintéticos, agora aceitos pela Europa como solução para se manter os motores a combustão ligados. Quanto mais longe forem as usinas produtoras dos mercados consumidores, maior a quantidade de carbono contabilizada.
O combustível sintético produzido no Chile e consumido na Alemanha, por exemplo, carrega todo o CO2 emitido pelo navio que cruza o Atlântico. De todo modo, o mais importante para o combustível sintético é que ele seja fabricado de forma sustentável, porque, de acordo com o estudo europeu, quando produzido por uma fonte de energia suja como as usinas que queimam carvão, o diesel sintético (o exemplo usado foi o diesel) não oferece nenhuma vantage em relação ao diesel fóssil.
Segundo os especialistas, os combustíveis sintéticos, gerados em matrizes limpas, reduzem de 85 a 96% a emissão de CO2 na comparação com os fósseis.
O estudo capitaneado pelas entidades europeias JRC, Concawe e Eurocar não levou em conta os materiais usados nos processos de produção, como água, por exemplo, e nem as emissões resultantes da construção das fábricas e unidades feitas para processar as matérias-primas e os combustíveis/eletricidade. “Isso tornaria os cálculos muito complexos e pouco transparentes”, diz a pesquisa.
Pode ser que esse rigor seja necessário no futuro, quando o sarrafo das medições subir novamente, assim como pode ser importante incluir as emissões geradas pela produção dos veículos, sua utilização e descarte ao final da vida útil (já existem estudos nesse sentido). Segundo os autores do estudo europeu citado, porém, eles optaram por não considerar o ciclo de vida dos carros (LCA – Life Cycle Assessment), porque isso poderia gerar resultados controversos.
O desafio principal em um levantamento assim é estudar o que causa maior impacto ambiental: se a produção dos combustíveis ou a das baterias (que devem ser descartadas depois de usadas).