Com a chegada do Natal, muitos gerentes mundo afora terão suas ceias amargadas caso não batam as metas previstas pelos seus chefes. A turma da Kia do Canadá, por outro lado, tinha tudo para saborear a virada do ano, mas optou por uma estratégia bizarra.
A rede CBC descobriu que a filial canadense da marca está sabotando suas próprias vendas por querer. A ideia é parecer menos bem-sucedida aos olhos da matriz, na Coreia do Sul, a fim de receber mais dinheiro no ano que vem.
O esquema foi revelado graças a uma videochamada, que reunia executivos nacionais da Kia canadense e representantes de concessionárias. “Todos vocês ficarão muito chateados comigo hoje”, disse o gerente Vince Capicotto antes de repassar o plano, destacando que ele valeria para todo o país e era uma ordem que vinha de cima.
O anúncio, feito em outubro, informava que a meta de 84.000 emplacamentos no país já havia sido cumprida; assim, os veículos que fossem importados ao Canadá daí em diante seriam retidos em um depósito próximo à cidade de Toronto. Por mais que clientes venham esperando meses por seus veículos, a marca iria segurá-los até que o ano virasse.
Desse modo, as vendas dessas unidades seriam completadas apenas em 2024, e a filial não bateria sua meta com tanta folga. “Com a desaceleração global, a Kia do Canadá quer controlar seu desempenho em varejo e vendas diretas em 2023, a fim de não demonstrar uma superação elevada das expectativas”, disse o gerente.
Caso isso ocorresse, explicou, a matriz optaria por reduzir a verba de marketing para o país, direcionando esse dinheiro para outro lugar.
Concessionários revoltados
Obviamente, o clima pesou após o anúncio. A gravação obtida mostra vários concessionários inundando o chat da videochamada com mensagens de revolta, inclusive defendendo funcionários mais baixos na hierarquia.
Um deles lembrou que trabalha com a Kia há 20 anos e, pela primeira vez, viu uma revenda ser “penalizada por vender muitos veículos”. Outros ressaltaram que a medida desrespeitava lojistas e consumidores, enquanto um terceiro completou: “não precisamos de marketing. Precisamos de carros”.
Sob anonimato, um concessionário explicou à CBC que a medida afeta duramente os vendedores, que dependem das comissões para completar a renda mensal, com tais comissões vindo só quando o veículo é entregue. “Imagine chegar em casa e dizer à sua família que você perderá uma boa quantia de dinheiro pelos próximos dois meses?”, protestou.
Vince Capicotto respondeu cada um dos comentários mas não se comoveu, pedindo que os lojistas pensassem a longo prazo. Um dos participantes ainda ironizou, perguntando se poderia dizer aos seus clientes que o atraso era por conta de um incêndio na Coreia do Sul. Inabalável, o executivo disse que cada concessionária deveria encontrar o melhor jeito de justificar a demora sem revelar a verdade.
Ferida exposta
No mercado canadense, a montadora passou por maus bocados: desde 2020, houve problemas com a pandemia, crise de semicondutores e greves pesadas de caminhoneiros, que bloquearam rotas comerciais.
Os prazos de entrega elevados já vinham causando cancelamentos de pedidos num 2023 que seria de redenção, mas o escândalo, ainda que recém-revelado, disparou um movimento de ainda mais desistências.
Com evidências tão fortes do esquema, a Kia do Canadá não conseguiu negar o plano, mas se recusou a discutir o assunto. Uma assessora de imprensa apenas ressaltou o compromisso da fabricante com “entregas no prazo em 2023 e além”.
A matriz da Kia também não comentou o “drible” sofrido, apenas destacando que a filial da América do Norte já havia dito o que era necessário.